quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Lygia Clark - Todo mundo é artista

Minha defesa para o filme sobre Lygia Clark:

Vivemos num mundo imagético. Deixamos, aos poucos, de ter contato de primeira pessoa com o mundo objetivo. Mudamos de canal, falamos ao celular e sacamos dinheiro através de forças poderosas invisíveis.

O mundo virtual, sem limites, vai tomando o lugar do mundo físico em nossas vidas. Trabalhamos, convivemos e nos divertimos por telas, interfaces que nos dizem o que fazer e nos guiam aonde queremos chegar.

Perturbados com a velocidade deste novo mundo, compartilhamos nossas loucuras por meio de redes e mídias sociais, buscamos forças na força invisível do divino – religiões, seitas, rituais – e acordamos todo dia em dívida com a informação que prolifera sem parar.

As forças invisíveis do mundo online podem nos trazer grande liberdade (virtual), mas podem também nos oprimir: vivemos com medo de inimigos igualmente invisíveis: vírus (de computador ou não), bactérias, assaltantes, terroristas. Vivemos trancados em locais seguros, mantendo contato com todo o planeta por janelas eletrônicas.

Oprimidos, com medo e confusos, sentimos necessidade de nos expressar: berramos gritos de guerra em torcidas, nos exibimos em webcams, falamos de nós mesmos por horas em chats e transformamos o corpo em outdoor de nossas opiniões.

Sutilmente loucos, procuramos alívio instantâneo em bebidas místicas como o daime, abusamos de drogas, lícitas ou não, e dançamos frenéticos ao ritmo de tambores (samba, candomblé, Afroreggae, Stomp).

Chegamos a pintar a face (manifestações de rua, estádios esportivos, carnaval). Enfim, tentamos simular a vida dos ancestrais, que viveram num mundo mais simples, fácil de entender: bastava alimentar e proteger a tribo.

Ou seja, o primitivo, hoje, nos dá alívio.

Lygia sabia disso. Seus pensamentos mais herméticos guardavam este segredo: a arte precisava estar a serviço da libertação do ser humano que hoje existe em células, comunidades, perfis online.

Verdadeiramente livre, Lygia esteve a frente de seu tempo, hoje fica claro. Compartilhou ao transformar o corpo do outro no objeto de sua arte muito antes da web 2.0, em que a ordem do dia é compartilhar.

A auto decretada não-artista deu o objeto da arte na mão de seu interlocutor, como em “Caminhando”, e estabeleceu que a “arte é o seu ato”. Fundou a arte participativa, interativa e compartilhada desde então.

Lygia destravou as portas do inconsciente através de sua arte e propunha isso como manifestação artística transcendental. Objetos sensoriais e relacionais, entre muitos outros artefatos, abriam um canal direto com o primitivo interior (self, no jargão de Lygia), criando um estado de auto-conhecimento revelador e, por isso, libertador.

O mundo de Lygia Clark é hoje o antídoto para o veneno da modernidade. Faz do contato físico real a revelação do eu e do outro. É mais catártico e legítimo que mil palavras ditas na terapia psicanalítica clássica. Faz do contato humano o abrigo que buscamos no mundo virtual e que, em verdade, lá não temos.

Nosso conceito é de um documentário de longa-metragem que reconstitua vida e obra de Lygia. Sua riqueza imagética, seu talento experimental e seu humor audacioso dão inestimável matéria prima a uma narrativa marcada pelas ações e proposições de Lygia Clark, realizadas para o principal narrador: as lentes da captação – olhos do espectador.

Acreditamos que o filme não só cumpre o papel de eternizar de forma audiovisual a histórica Lygia Clark, embora difícil de definir academicamente, como também dissemina manifestação artística extremamente atual e útil nestes tempos em que estamos sempre com pressa.

Restartar o mundo é resetar Lygia Clark.

O mestre das sete cordas

Um perfil do meu grande amigo Luís Filipe de Lima, extraído do site nominimo.com.br de 17.05.2004 (2ª feira).


Ele tem pedigree artístico inquestionável. Entortou talheres na casa de Janete Clair aos sete anos. Especializou-se em repertório barroco na flauta doce aos nove. Foi ator-mirim da TV Globo. Aos 12, não entendeu Schopenhauer, mas achou divertidíssimo. Quis ganhar no aniversário de 13 anos uma guitarra, mas não conseguiu. Jamais quis ser roqueiro. Conheceu o Brasil com o seu bandolim. Estreou no teatro como filho de Fernanda Montenegro. Perdeu o prêmio Mambembe de revelação no teatro para o travesti Rogéria. Faz parte da roda de samba mais antiga em atividade no Rio. Estudou jornalismo, mas não exerceu. É mestre com uma dissertação sobre cantigas de santo e doutor com uma tese sobre o choro. Dançou ao som da Orquestra Tabajara no cinema e depois no próprio casamento. Estreou uma superprodução há seis meses: o filho Miguel. Hoje é um dos melhores sete cordas do país e seu nome é associado à diversão inteligente. Enfim, nosso protagonista é uma feliz convergência de talento, vocação e oportunidade. Senhoras e senhores, com vocês, Luis Filipe de Lima.

Sereno por fora, mas inquieto por dentro, faz tudo ao mesmo tempo agora. É diretor musical de um longa-metragem que conta a vida de Noel Rosa, com direção de Ricardo Van Steen a ser rodado em julho. Faz a direção musical de uma peça dirigida por André Paes Leme que homenageia Grande Othelo – ator que ele próprio substituiu em dia de excessos alcoólicos, numa montagem de Ionesco dirigida pelo pai. Está na produção musical de dois discos: o do violinista francês Nicolas Krassik e do compositor Osvaldo Pereira - segundo Filipe, um grande letrista: “Espero que o disco seja bem visto porque é um talento raro.” Bia Bedran acaba de chamá-lo para dirigir Lamartine para crianças. É responsável pela revisão técnica de um livro de Nei Lopes sobre as religiões africanas no novo mundo. Está escrevendo um livro sobre Oxum para uma série sobre santos. Acabou de escrever outro com a memória do sete cordas. Ao lado de Elton Medeiros, está tocando o livro “Quem matou Geraldo Pereira?”, obra de ficção a sair em 2005. E Filipe ainda teve tempo de pensar numa solução para o bar Semente, na Lapa, reduto do samba e do choro, falido ano passado: criar uma comuna. Resultado: o bar foi reaberto em janeiro deste ano por uma cooperativa de músicos e antigos fregueses, inclusive Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Fedelho abusado

Nasceu dia 24 de maio de 1967, na antiga Casa de Saúde São Marcelo, no Leblon. Faz uns quatro anos, ele voltou ao hospital com o pé torcido. A recepcionista perguntou: você já esteve aqui antes? “Como assim, eu estreei aqui!”, debochou. O grande responsável por sua formação européia foi seu pai, o falecido Luis de Lima, ator e diretor português que tem uma longa folha de serviços prestados ao teatro, aqui e na Europa, foi assistente de Jean Villar no Théâtre National Populaire, em Paris, e fez cinema com Yves Montand, no papel de Bernardo, coadjuvante de destaque no filme “Salário do medo”, de Henri-Georges Clouzot. Foi o segundo nome da companhia de mímica de Marcel Marceau. Veio para o Brasil em 1953, trazido por Sábato Magaldi, que foi a Paris com a missão de trazer um professor para a Escola de Artes Dramáticas da USP. Luis de Lima apresentou ao Brasil o absurdo de Ionesco e Beckett. A mãe de Luis Filipe, a bailarina clássica Maria Luisa, foi do corpo de baile do Teatro Municipal de São Paulo. Ao tocar na inauguração do Sesc Belenzinho, deparou-se com a mãe aos 20 anos num painel em tamanho natural. Tratava-se de uma exposição sobre o balé do Quarto Centenário. Em TV, ela foi do corpo de bailarinos da já histórica primeira abertura do Fantástico. Luis Filipe é filho único, já que as duas meninas que vieram antes morreram no parto.

Leitor ávido desde muito novo, Filipe – como é chamado pelos mais íntimos - leu de tudo e muito desde cedo: literatura, filosofia, história. Compra todos os livros que acha sobre o Rio. Embora hoje focado em música, sempre foi um curioso com interesse difuso. Seu primeiro instrumento foi o violão, aos sete anos. “Tinha fixação pelo violão, todos os lugares aonde eu ia com os meus pais tinha um. Era uma época mais fácil de se encontrar um violão de bobeira, ainda vivíamos o rescaldo da geração da Bossa Nova.” Foi então que, durante uma viagem, o pai decidiu dar um violão de presente ao filho. “Um espanhol vagabundo. Está até hoje aí. É do coração.” Filipe ouviu muita música clássica, especialmente a barroca, em cujo repertório se especializou tocando flauta doce. Aos dez anos, já tocava sonatas de Vivaldi, Teleman etc.

O primeiro trabalho em TV foi em 1975 na telenovela Bravo, de Janete Clair, na qual seu pai fazia o empresário do maestro vivido pelo ator Carlos Alberto. “Nessa época, meu pai estudava muito com a Janete e o Dias Gomes. Eles davam muitas festas, eu tocava uma zona danada na casa dela”, lembra Filipe. Era época de Uri Geller, aquele paranormal dublê de relojoeiro que fez muita gente pagar mico em frente à televisão. “Uma vez, eu e os filhos da Janete, Denise e Alfredo, ficamos entortando todos os talheres da casa na marra.” Por causa disso mesmo, Janete adorava aquele fedelho abusado. Um dia, foi ela quem surpreendeu o moleque: “Já que você é tão esperto, tão inteligente, eu quero escrever um papel para você na novela. Você topa?” Sem saber ainda o que era atuar, ele foi o filho do caseiro na casa de campo do maestro. Estreou em preto e branco ao lado de Bete Mendes, Aracy Balabanian e Neuza Amaral.

Em 1979, fez “Os gigantes”, novela cujo triângulo amoroso era Dina Sfat, Francisco Cuoco e Tarcísio Meira, escrita por Lauro Cesar Muniz. Muitas cenas de flashback materializavam as lembranças da infância da personagem de Dina. Procuravam um garoto que fosse parecido com Tarcísio. Filipe foi fazer teste a partir de uma ficha sua encontrada no departamento de elenco. Régis Cardoso - que hoje tem o samba em comum com nosso protagonista – era o diretor do set e ajudou Filipe a desgrilar um pouco sobre a influência dos pais na carreira. Após decidir-se pela escalação do então rotulado ator-mirim, ficou surpreso ao descobrir de quem era filho. “Ele abriu dois olhões e perguntou por que eu não tinha dito antes. Quase grilei de novo.”

Filipe desistiu de ser ator quando começou a ver que era preciso investir no marketing pessoal. “Na verdade, nada contra, mas eu tenho uma certa preguiça. Não é da minha índole.” Era um circuito de estréias, muita festa estranha com gente esquisita. “Naturalmente fui procurar a minha turma.” É nesse ponto que ele vê a diferença entre talento e vocação: “Talento é uma coisa que você aprimora, burila. É a capacidade de adequação a uma função. Vocação é a relação que você constrói com o meio profissional. Você pode ter talento pra ser médico, facilidade de entender o assunto, mas você tem verdadeiramente vocação para ser médico se você topar ser acordado a qualquer hora da madrugada para atender a um paciente.”

Rogéria, a rival

Não é inflexível a decisão de deixar a profissão de ator, tanto que ele guarda com carinho a participação em “Copacabana”, de Carla Camurati. Filipe foi escalado para fazer o personagem de seu próprio pai em flash backs. “Já não é mais a minha praia, mas se pintarem oportunidades interessantes pode dar pé. Foi muito bom ter feito ‘Copacabana’ porque não precisava mostrar serviço. De repente ,você não está precisando pensar no próximo filme.” Uma meia coincidência e um prazer por inteiro marcam este trabalho. No filme, ele dançou ao som da Orquestra Tabajara e, pouco tempo depois. voltou a dançar o repertório de Severino Araújo na festa de seu casamento com a atriz Maíra Graber. Antes porém da bela e concorrida cerimônia, na Vila Rizzo (São Conrado, zona sul do Rio), foi a vez de uma outra agradável coincidência: o grupo de música de câmara Quadro Cervantes se apresentou durante toda a chegada dos convidados. Filipe fala disso com um orgulho gentil: “O Helder Parente (flautas, voz e percussão) e o Nicolas de Souza Barros (alaúdes, violão, guitarras renascentista e barroca), por exemplo, que são caras gabaritadíssimos, participaram de uma montagem de meu pai chamada ‘Machado em cena’ em 1989.” O espetáculo inaugurou o teatro 2 do CCBB do Rio e Filipe estava lá como assistente de direção.

O CCBB merece um capítulo à parte nesta biografia. Filipe tem criado e dirigido séries de shows como “Partido-Alto: Samba de Fato” , em fevereiro de 2003, e, de lá para cá, “Sete Cordas: Um Violão Brasileiro”, “Lupicínio” e “Lamartine em Revista”. “Viva Lupicínio!” está previsto para setembro. Pesquisou, roteirizou e fez a direção musical e cênica de cada um. Nestes espetáculos, dirigiu Elza Soares, Nei Lopes, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Arlindo Cruz, Zé Renato, Leo Jaime, Eduardo Dussek, Xangô da Mangueira e Soraya Ravenle, só para ficar nos mais conhecidos.

Em 1980 foi o ano da grande estréia no teatro. Ele era o filho de Fernanda Montenegro e Fernando Torres na peça “Assunto de família”, de Domingos de Oliveira. Dirigida por Paulo José, com Ivan de Albuquerque no elenco, a montagem ficou seis meses no Teatro Ginástico. “Ensaiamos nos estúdios da recém-fechada TV Tupi , no Cassino da Urca. Eu tinha 12 anos.” O personagem que Filipe fazia era o próprio Domingos, em mais um de seus textos autobiográficos. “Ele, às vezes, ia assistir aos ensaios, me dava uns toques e tal.” Dramaturgicamente, aquele garoto era o protagonista, o tempo todo batendo bola com Fernanda e todo o elenco. Por causa deste trabalho, foi indicado ao prêmio Mambembe de revelação, mas perdeu para o travesti Rogéria e seu teatro de revista. Coincidência: foi a mãe de nosso herói quem emprestou ao então maquiador Rogério, alguns anos antes, o par de meias para o primeiro show do travesti. Os dois eram colegas na TV Excelsior.

Foi uma novela, no entanto, que fez Filipe retomar o contato com a música e com o bandolim, um pouco abandonado por não ter com quem tocar, já que o grande barato do instrumento é ter outros músicos acompanhando. “Nunca pensei que iria ser músico profissional.” Foi quando Aguinaldo Silva o viu atuar na peça “Os meninos da rua Paulo”, do húngaro Molnár, e, sabedor de seus dotes musicais, resolveu escrever um personagem bandolinista para ele em “Partido Alto”. Luis de Lima tinha montado uma peça de Aguinaldo em parceria com Doc Comparato, “As tias”, e o autor conheceu Filipe. A peça húngara fora traduzida por Paulo Ronai. “Ele inclusive insistiu para que meu pai montasse a peça, mas acabou acontecendo pelo Claudio Botelho, que conheci em saraus de teatro nas escolas onde a gente estudava.” Botelho resolveu convidar Luis de Lima quando Roberto Bontempo deixou a direção da peça. “Meu pai acabou topando”, lembra ele. Já escalado para a novela, Filipe foi convidado a abrir ao bandolim um show em comemoração da Revolução dos Cravos, apresentado por Luis de Lima e Mário Lago para um Teatro João Caetano lotado, com gente sentada no chão. Chico Buarque e Fagner iriam se apresentar naquela noite também. “Eu abri o espetáculo, foi um frio na espinha inesquecível”, tão grande quanto aquele que sentiu quando, também na abertura, entrou pela primeira vez sozinho em cena na peça de Domingos de Oliveira. Era a primeira montagem com Fernandona depois do sucesso estrondoso de “É…”, de Millor Fernandes. A estréia teve briga na porta. Foi quando caiu a ficha e ele entrou em pânico. Ele lembra o barulho da cortina se abrindo, ao terceiro sinal: “É, não teve jeito, tive que me jogar às feras.”

Violão de botequim

Mas por que bandolim? Ao completar 13 anos, os pais de Filipe resolveram oferecer um instrumento ao filho, um outro presente, depois do violão e da flauta. O rapaz correu para a sua coleção da revista de cifras “Violão e Guitarra”. Um anúncio da Giannini mostrava um violão, que ele já tinha, um cavaquinho, que não o seduziu (“parecia um violão pequeno”), uma guitarra e um bandolim. “Entrei numa de tocar guitarra.” Os pais se recusaram alegando, verdade ou não, que ele iria tocar alto e os vizinhos iriam reclamar. “Acho que eles temeram que eu me tornasse um roqueiro”, brinca. Mas isso nem passou pela cabeça dele: “Tem coisas que só existem aqui, por que não levar essas coisas adiante? Isso é o que me interessa mais.” Filipe conta que sua intenção na guitarra era pesquisar o som eletrificado de uma maneira mais experimental.

Aos 18 anos, Filipe caiu numa espécie de limbo. Planejava fazer vestibular para química (“sempre gostei das exatas”), mas acabou indo para Nova York estudar produção audiovisual por um mês. Fez mais alguns cursos na área, mas não era bem aquilo que ele queria. A carreira de bandolinista não deslanchara. A vida de ator lhe reservaria na época um papel na comédia “Se meu roscofi falasse”, com Sandra Barsoti. Depois de dois anos fora do segundo grau, resolveu que faria vestibular para jornalismo. “Foi a única fase em que eu fiquei na aba de meus pais sem ser mais uma criança. Eles nunca me negaram o menor apoio em relação à minha formação, artística ou não. Eu vi neguinho se apertando para eu fazer um curso disso e daquilo.” No final da faculdade, aos 23 anos, já estava trabalhando com música. Havia retomado o velho violão, mas sempre ligado na linguagem do sete cordas, nas chamadas “baixarias de sete cordas”, que ia aplicando no de seis. “O meu violão é de botequim”, garante, muito embora tenha feito cursos regulares de teoria e harmonia funcional.

Passou para o violão de sete cordas no bar Mandrake, em Botafogo, numa roda que durou oito anos. “Era um grupo de jovens que queria tocar samba sem ter ninguém para encher o saco, num bar em que garçons não jogassem água no pé e sem vizinhos para reclamar”, recorda. Quando o sonho acabou, ele e o cavaquinista Eduardo Gallotti passaram a tocar no bar Severina (então Carne de sol), onde estão todas as terças até hoje, na roda mais antiga da cidade, iniciada em 1987. O primeiro cachê surgiu de uma proposta do dono do Mandrake, Antônio Carlos Amorim. Os melhores músicos da roda e principalmente o público estavam sendo afugentados por alguns bicões equivocados. A solução foi contratar os melhores e afastar os chatos. Beth Carvalho, Nelson Sargento, Monarco e Zeca Pagodinho passaram a freqüentar. Roda à maneira antiga, voz e instrumentos não eram amplificados no Mandrake. Melhor assim: “Eu pude aprender a tocar de maneira relaxada, mesmo porque errava tudo.”

Profissionalização mesmo aconteceu quando Noca da Portela convidou Filipe para tocar na série “Encontros cariocas”, na rua da Carioca. Sombrinha, Arlindo Cruz, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, dona Ivone Lara, Nelson Sargento e Elton Medeiros participaram. “Ganhei muita cancha ali.” Além dos craques, uma grande escola para músicos, conta Filipe, é gente que canta mal, que tropeça no ritmo, muda de tom no meio da música: “E você tem que ficar ali, acompanhando o cara de qualquer maneira.” Sua relação com o samba vai além das rodas. Desfilou três anos tocando violão no Império Serrano, convidado por Wilson das Neves, “uma dupla honra”, como faz questão de registrar. Há dez anos é ligado ao bloco Simpatia é Quase Amor, tendo sido presidente do júri para a escolha do samba. Os únicos desafetos na vida vêm dessa fase. Em 1985, desfilou na ala dos artistas televisivos da Caprichosos de Pilares, que veio naquele ano com o enredo de Luis Fernando Reis, “Tem bumbum de fora pra xuxu, qualquer dia todo mundo nu”. Gostou: “O enredo era crítico, foi bacana ter desfilado ali.”

Toda essa experiência fez de Filipe um artista com boas idéias, criativo, inusitado. É uma soma de fatores que desemboca no grande conceito de inteligência. “Essa bagagem que fui colecionando ao longo do tempo é o que está agora se traduzindo em projetos culturais com perfil definido, mas ao mesmo, com o perdão da má palavra, multimídia”, avalia. Ele acha, como todo mundo, que o Rio vem sofrendo uma queda na auto-estima e que é preciso recuperar o velho e bom espírito carioca sem entrar no clichê, realizando projetos culturais que criem o interesse cada vez maior na cultura do nosso quintal. Filipe, que milita em rodas há 20 anos, nota que há um rejuvenescimento do público. “A idéia é entupir os ouvidos dos mais novos criando um interesse crescente nesses gêneros musicais. Isso resulta no surgimento de bons instrumentistas, bons cantores e, numa terceira medida, bons compositores.”

Walmor Pamplona

17.05.2004 |